Cinema a dois com Hal Hartley e ” Confiança”

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Confiança, de Hal Hartley

“Confiança” foi o primeiro filme de Hal Hartley que chegou no Brasil. E com ele a expectativa do cinema independente moderno para aqueles que já apreciavam o estilo do diretor. Há uma corrente forte que considera este um de seus melhores trabalhos. Independente do favoritismo é inevitável a constatação de que os temas abordados por Hartley, como os personagens jovens quase sempre em crise, críticas ao tão falado American Way Of Life, paradoxos, metáforas que permeiam tanto a construção dos personagens quanto o roteiro, os diálogos “desintegrados”, amorfos, estão presentes em “Confiança” de 1990.

A cena inicial do filme dá
exatamente a tônica do que virá a seguir. Uma menina, em close, desafia os
progenitores, munida de sua rebeldia adolescente e com um tapa ocasiona a morte
por enfarte do pai. O cinema de Hartley é assim, repleto de pessoas estranhas e
alegorias que, de maneira bastante peculiar, sublinham a realidade quanto mais
dela parecem se distanciar. Por isso talvez as metáforas amorosas citadas acima
tragam consigo beleza, sublimação e violência. Essa ambiguidade apresentada
sugere a ausência total e absoluta de qualquer tentativa de maniqueísmo. Muito
embora o diretor crie personagens com traços perversos, sádicos, como a mãe de
Maria e o pai de Matthew, de alguma forma não fica evidente a maldade pura
destes frente a uma hipotética bondade dos respectivos filhos. Há uma
alternância de lugares assumidos, de comportamentos e sentimentos.

A morte do pai representa um arcabouço de conservadorismo sucumbindo ante a vívida juventude contestadora. A partir daí, a mãe de Maria a tratará como eterna devedora. Em paralelo, um engenheiro eletrônico é acossado pelo pai dominador que, igualmente, o toma por devedor, uma vez que seu nascimento representou a morte da mãe. Mais uma vez Hartley ratifica a influência do meio, do sócius na personalidade de seus personagens como se eles tivessem se tornado algo devido a cultura, aos hábitos, a moral vigente.

O encontro dos dois configura história de amor das mais interessantes. Ela amadurece a passos largos sofrendo sob a cobrança materna, decidindo-se ainda entre ter ou não o filho do namorado que a abandonou. Ele, cuja raiva externa não consegue manifestar-se diante do pai dominador, vê nela alguém para proteger. Ambos cobram constantemente provas de confiança do outro, seja atirando-se de costas no vácuo ou mesmo condicionando esse ou aquele movimento a determinada decisão do parceiro.

Se há uma ponta estável e constante nos filmes de Hal Hartley, talvez seja a presença de um pessimismo forte e cruel encarnado quase sempre pelos protagonistas. E nós, enquanto espectadores, somos levados ao justo oposto do que Martin Donovan (Matthew) presentifica. Somos agraciados com uma visão otimista, fazendo-nos crer que a situação deste ou daquele personagem é reversível, que há saída na medida em que olhamos para ela. Mas do contrário, se não olhamos, como enxergar? “Confiança” é curioso na medida em que suas figuras optam por caminhos alternativos à dor apenas depois de exauridas pela cobrança alheia. Os protagonistas seguram-se um no outro, quem sabe por medo, mas provavelmente por amor mesmo, daqueles tortos (nem por isso menos verdadeiros e intensos) que nascem como planta nos vãos do asfalto áspero.

Por Marcelo Muller e Ana Carolina Grether

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"Temos necessidade de alternativa" (Zizek)
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2 respostas para Cinema a dois com Hal Hartley e ” Confiança”

  1. Carol,
    Tem sido bastante enriquecedor conhecer o cinema de Hal Hartley na sua companhia. As conversas e os textos resultantes das nossas elucubrações têm potencializado sobremaneira a experiência de passear pela autoralidade desse diretor americano que sempre trabalhou de maneira independente.

    Aproveito para te parabenizar pelas edições que vem fazendo. As construções, unificando os meus e os teus pensamentos, dando-lhes um caráter de unidade e pluralidade ao mesmo tempo, são excelentes.

    beijos

    • Eu que te agradeço a força Marcelo! Não só..mas a sua disponibilidade, generosidade e interesse em realizar o Cinema a Dois:) Também estou adorando essa parceria. Obrigada também pelas ajudas providenciais e sobretudo pelo estímulo!! beijos

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